sábado, 5 de setembro de 2015

ZÉ MUNDÃO - VIAGEM A MAUÉS

Uma das praças de Manaus que o Zé mais gosta, para passear e encontrar os amigos para o bate papo, é a Praça Heliodoro Balbi (em homenagem ao advogado, político, professor e fundador da Academia Amazonense de Letras), conhecida também como Praça da Polícia (em decorrência da instalação da corporação militar no Palacete Provincial). Nela existe um belíssimo coreto em arquitetura art nouveau, construído com as colunas advindas do Teatro Amazonas. Ali, na sua infância, Zé assistia aos domingos a retreta da banda de música da Polícia Militar. A rodada de bate-papo com amigos e intelectuais geralmente acontece no Café do Pina e, esporadicamente, num banco bem embaixo de linda e imensa árvore, conhecida por mulateiro. Trata-se do local de encontro dos membros do movimento cultural e literário de renovação das letras, conhecido por Clube da Madrugada. O Café do Pina, antigo Pavilhão São Jorge, está localizado dentro do complexo da praça, mas seu lugar original ficava na rua Floriano Peixoto, bem em frente ao Cine Guarany. Zé frequentava aquele lugar desde sua infância, pois, ao sair do cinema, adorava tomar uma média (café com leite e pão com manteiga) e, admirar o proprietário, senhor Pina, um português que tratava todas as pessoas, independente de idade, com a saudação carinhosa “alô jovem!”. No espaço atual, conhecido popularmente como Republica Livre do Pina, gosta de tomar um “pingado” aos sábados e jogar conversa fora.

Um dia, sentou-se na escada da Rotunda (monumento circular, construído pelo prefeito Araújo Lima, em 1929), quando apareceu seu amigo do peito, Bené Sonson, um sujeito que, quando toma “umas e outras”, gosta de ouvir somente músicas das antigas do “Reiberto”, e fica o tempo todo reproduzindo o chavão: – Sou o Bené, caboco de Maués! Me respeite! O cabrito quando é bom, não berra! Será que ela é a bacana? Nesse encontro, ele estava com aquele “bafo de cevada” e resolveu torrar a paciência do amigo: – Meu compadre, eu te conheço faz um tempão, mas, me diz uma coisa, por que o teu apelido é Zé Mundão? Começou o Zé: – É um apelido de infância, eu gostava de girar um globo de plástico e falava o tempo todo que iria conhecer o mundo inteiro! Para Zé Mundão foi um pulo. – E ai, quantos países o amigo conheceu? – Nenhum! Praticamente não saí de Manaus toda minha vida! Conheço apenas o Rio de Janeiro e algumas cidades do nosso interior. – Poxa, então o apelido deve ser mudado para Zé Manaus! Só vou te chamar assim de agora em diante! Explicou Mundão: – Acho muito difícil mudar agora, Sonson, pois apelido quando pega, não tem sacristão que mude! – Meu compadre, por falar em interior, estou indo para Maués no próximo final de semana para a Festa do Guaraná. Vamos nessa? O barco sai à noite de sexta-feira lá do rodo, convidou o amigo. – Tô dentro, Sonson! Na sexta vou te aguardar no porto às seis, acertou o Zé. – Combinado, Zé Mundão, digo, Zé Manaus! Hehehehehe!

Conforme o combinado, o Zé se mandou para o roadway (o cais flutuante construído pelos ingleses no início do século passado), comprou sua passagem para um barco regional (fabricado de madeira). Seu cicerone, Sonson, não deu o ar da graça, e Zé, como já estava com a passagem comprada, resolveu viajar sozinho sem eira, nem beira para Maués. Este município fica a 367 quilômetros de Manaus, no Médio Amazonas, entre os rios Madeira e Tapajós, conhecido nacionalmente como “A terra do guaraná”. Seu nome é uma homenagem à nação Maué (tupi = papagaio curioso e falante), e o turismo é muito forte naquela região, em decorrência das belas praias e da realização da Festa do Guaraná e do Festival de Verão.

O barco estava lotado, o único local que o viajante encontrou para armar sua rede foi em frente ao pequeno boteco, onde o movimento de pessoas era intenso. Seu dono colocou uma caixa de som amplificada bem ao lado da rede do Zé, que não conseguia dormir. O único jeito foi enrolá-la numa viga do barco. E dá um tempo no boteco, e toma uma aqui, outra acolá, o tempo foi passando e todos falando alto, rapidinho se faz amizades. O Zé conheceu um sujeito por nome de Gondinho, natural de Maués, que fazia anos não ia a sua terrinha. Ele estava acompanhado do filho, Coroinha, jovem católico, apostólico e romano, além de beldades, duas colegas de trabalho. Fez amizade também com um cara que era o Padeiro (dono de duas padarias em Manaus) e mais quatro pinguços da melhor qualidade. Lá pelas tantas, o Padeiro fez a seguinte declaração: – Fiz a maior leseira! Amanhã será meu aniversário, passei a tarde toda tomando umas e outras lá no bar Caldeira, quando senti a maior saudade da minha terra Maués. Fui para o rodo e entrei no barco com a roupa do corpo, nada avisei para minha família, vai ter uma feijoada amanhã para os convidados lá em casa, como é que eu vou explicar essa minha loucura? O Zé logo procurou consolar o camarada: – Agora não vai dá para consertar nada, estamos navegando a noite no meio da maior floresta do mundo, a única solução será você ligar para a tua família quando chegarmos a Maués e pegar o primeiro avião para Manaus! Por ora, é melhor beber e esquecer. 

A viagem transcorria numa boa, muito forró/brega, com as beldades mostrando aquele visual, o Gondinho contando piadas e o Coroinha enchendo o saco de todo mundo, falando somente de religião. Depois de meia-noite, o Zé Mundão resolveu dormir. Quando chegou ao seu lugar, os pinguços estavam jogando dominó bem embaixo da sua rede, teve que aguentar um bom bocado aquela zoada de pedras na mesa, além daqueles comentários: – Até que enfim tu jogaste a carroça de sena! Gato, não, papai! Capote! Tu fechaste meu jogo, anta! Uma hora depois, a paciência do Zé chegou ao limite máximo, deu uma bicuda na mesa de dominó, gritou um palavrão, mandando os pingunços pra aquele lugar! Somente assim conseguiu, finalmente, dormir. Seis da manhã em ponto, os pinguços ficaram azucrinando: – Zé, Zé Mundão, acorda, acorda, vamos tomar o café da manhã! Pulou da rede, e logo um deles lhe deu um copo de cerveja, o café para eles, para Zé, não! Mesmo assim, ele deu uma golada e uma vomitada em seguida! 

Fazia uma manhã de sol, dava para notar o quanto o rio Maués-Açu é bonito, mas, para o Zé Mundão, o mais admirável de tudo, superando até a beleza do rio, foi ver as beldades de fio dental, pegando um bronze na área de lazer do barco. A galera se reuniu novamente no boteco, e haja suco de cevada; lá pelas dez da manhã, o Padeiro mandou ver: – Até chegar em Maués, tudo será por minha conta, vamos comemorar meu aniversário, macacada! Aí foi graça para o Zé! Nessa altura do campeonato, o Padeiro já tinha esquecido sua mulher, os filhos e até seus convidados. Não estava mais nem aí para a feijoada em Manaus! Chegando às onze e meia da manhã, o barco ancorou próximo da ponta da Praia da Maresia que, nesta época do ano, é o point da galera, com areia branca, água cristalina, 500 metros de extensão, palco armado para shows. Estava apinhada de gente. 

A primeira missão era forrar o bucho, assim, seguiram para uma peixaria, cujo dono era amigo do peito do Gondinho. Ao chegarem ao estabelecimento, a festa foi total, foram acomodados numa imensa mesa de madeira, posta no quintal, e o pedido foi feito pelo Padeiro: – Quatro tucunarés parrudos, refrigerante para as beldades e um camburão de cervejas para os pinguços & Cia! Tudo por minha conta! Zé Mundão ficou observando o curumim (menino pequeno), filho da cozinheira, que fez um prato de três andares e colocou duas cabeças de tucunaré para o moleque, que comeu tudo e ainda pediu bis. Muito diferente de seus filhos quando eram pequenos, quando sua mulher tinha que fazer “aviãozinho”, a fim de que eles comessem. Um senhor se aproximou e puxou conversa como Mundão, era uma pessoa simples, com voz pousada, um típico interiorano: – Você vai ficar onde, Zé Mundão? – Ainda não sei, mas estou pensando em ficar num hotel ou na casa da prima do Gondinho. Insistiu o recém-chegado: – Se você quiser pode ficar na minha fazenda! – Poxa, muito agradecido pelo convite, mas, já fiz amizade com essa turma e não posso ficar longe deles, agradecendo ao convite. O Zé ficou surpreso com o convite, pois ficou sabendo através do Gondinho que o velho era um fazendeiro, um dos mais ricos de Maués. 

Deixaram a bagagem no restaurante e foram para a Praia da Antártica, a mais famosa e movimentada da cidade, muito arborizada, de areia branca e águas límpidas. Possui o mais lindo pôr-do-sol do Brasil. Então, Zé se lembrou de um amigo baiano, Lúcio, um cantor e compositor que passou uma temporada em Maués, e, inspirado nas belas praias, compôs a bela canção chamada Beira de rio. Com a lembrança, começou a cantarolar a música: Como é bom morar na praia, no lugar que se imagina, viver, numa praia, na beira do rio, me dar arre pios, saber que a sua cabeça, não está nesse lugar, na beira do rio, canta passarinhos, na beira do rio, olha o Sol se pondo, aonde ele se esconde, do outro lado da praia, do lugar que se imagina, oi, oi, oi, Maués. 

Voltaram ao restaurante, pegaram as suas mochilas e rumaram para a casa da prima do Gondinho. Lá chegando, foram bem recepcionados, ela serviu aos visitantes um jantar bem regional, guisado de paca. Porém, que mais chamou a atenção do Zé foi o hábito que os moradores têm de tomarem a todo tempo guaraná em pó, ralado na língua do pirarucu, análogo ao hábito que os paraenses possuem pela cuia de açaí com farinha de tapioca e, os gaúchos, pelo chá mate no chimarrão. Segundo os estudiosos, esse saudável hábito caboclo, aliado à dieta amazônica, que inclui uma alimentação básica de peixes, frutas e verduras, conjugado com exercícios físicos e noites bem dormidas, é a chave para alcançar a longevidade. Tanto que os nativos de Maués conseguem, estatisticamente comprovado, a mais longa vida do país. 

A prima do Gondinho fez a gentileza de passar a roupa do Zé Mundão, pois ele iria assistir a encenação da Lenda do Guaraná. Ela comentou que aos domingos índios saterê-mauê vêm à cidade, para fazer trocas e receber donativos. Num belo gesto, ele doou algumas mudas de roupas para que ela entregasse aos índios. 

Saiu com o Coroinha para dar um rolê pela cidade, mas o religioso o levou direto a igreja. Não teve escapatória, teve de assistir a missa todinha; depois, conseguiu dar um drible nele, pois a praia do Zé era outra, queria beber e ver a mulherada. Voltou altas horas da madrugada e, como não conseguiu atar sua rede, o jeito foi dormir no chão. 

Foi acordado pelas beldades, que o convidavam para voltar com elas para a capital. Ele foi na conversa e, apesar da insistência dos amigos para que ficasse, embarcou de volta para Manaus. Na saída do barco, comentou para as beldades sobre um episódio acontecido há anos, quando um padre foi expulso dessa cidade. No embarque, ele lançou-lhe a seguinte maldição: – Maués, mau és, mau foste, mau serás! 

Quanto ao Zé, apesar das poucas horas em que ali permaneceu, ele gostou muito da cidade, tanto que falou para elas: – Cruz credo, ainda bem que não vingou a maldição desse padre, pois ela é uma cidade mui bela, boa, agradável, de um povo feliz e hospitaleiro. Não possui nada de mau! Oi, oi, oi, Maués!

Trecho do livro (ainda não publicado) "Zé Mundão" J. Martins Rocha

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