domingo, 27 de maio de 2012

O SACI DA PARECA


A figura do Saci é, sem dúvida, uma das mais populares entidades fantásticas do nosso Brasil, um negrinho de uma só perna, de cachimbo e gorro vermelho, e que, consoante a crença popular, ele é bastante travesso, persegue os viajantes, armando ciladas pelo caminho – por outro lado, o nosso Saci da Pareca, foi assim apelidado desde a sua tenra idade, em decorrência de ter nascido também negrinho, por adorar usar um macacãozinho encarnado e, ser morador do bairro de Aparecida, chamada carinhosamente pelos seus moradores por Pareca.

O nosso Saci nunca foi chegado a perseguir ninguém, muito menos de armar ciladas, mas “já foi um menino levado, jogador de petecas, só não foi sacristão porque era levado da breca”, como escreveu um dia o compositor e cantor amazonense “Carapeta” – aprontou muito na sua infância, adolescência, vida adulta e, um pouco na velhice, mas, tudo dentro da normalidade de um saci.

Nasceu numa casa flutuante que ficava nos arredores do bairro e, por ser de uma família bem pobrezinha, a sua mãe biológica resolveu deixá-lo com um casal que morava na Bandeira Branca, abandonando-o para sempre – recebeu na pia batismal o nome de José, registrado oficialmente no cartório como José Raimundo de Souza, tornou-se o caçula dos cinco irmãos, a mãe era capixaba e o pai cearense; um dos seus irmãos era o empresário Zezinho da Casanova, um jogador de futebol que virou empresário, dono de uma loja de roupas masculinas, famosa nas décadas de 70 e 80, situada na Avenida Eduardo Ribeiro.

O seu bairro é considerado o berço de muitos historiadores, poetas, sambistas e católicos fervorosos, fica na zona sul, sendo um dos mais antigos de Manaus, nele ficava a Cervejaria Amazonense e a Fábrica de Gelo Cristal, de propriedade dos Miranda Corrêa – tudo a ver com o Saci da Pareca.

Ele gostava de frequentar desde novinho, a Igreja de Nossa Senhora de Aparecida, principalmente, as novenas das terças-feiras e as missas aos domingos; brincava de futebol no campo do Colégio Dom Bosco; foi ajudante do seu pai adotivo numa pequena taberna de vendas de farinhas e legumes, começando a batucar no balcão e a tomar gosto pela música ainda menino.

Ainda rapazola, começou a participar das rodas de samba que aconteciam no antigo “Largo da Bandeira Branca”, um reduto de boêmios, sambistas e palco dos principais eventos culturais do bairro.

Foi esquentado da cabeça desde novinho, não levava desaforos para casa, brigava com os seus colegas de bairro e, constantemente entrava em atritos com os moleques dos bairros de São Raimundo e da Matinha, coisa normal quando Manaus acabava no bairro de Flores, numa época em que os jovens tinham rixas com os outros das imediações, com muitas brigas no “mano a mano”, sem uso de armas brancas ou de fogo.

No campo profissional, foi de tudo um pouco, ralou muito trabalhando nos depósito das Lojas Americana e Bemol e de uma empresa sediada no meio do Rio Negro (num flutuante), prestadora de serviços para a Refinaria de Manaus - também comercializou por muito tempo os famosos e proibidos “bicho de casco” (Tartarugas e Tracajás) e dos seus ovos, muito apreciados pelos manauaras de então, sempre dando um jeitinho brasileiro para driblar a fiscalização das autoridades.

Chegou a ser o proprietário do “Sacy Bar”, um boteco situado a Rua Ramos Ferreira, próximo à sede do Rio Negro Atlético Clube, – o lugar era muito frequentado pelos sambistas do bairro, da turma do Partido dos Trabalhadores, artistas e boêmios do centro da cidade, com a casa cheia todos os finais de semana, pois rolava muito samba de raiz (tocados em aparelhos 3 em 1, com discos de vinil e fitas cassetes), com muito caranguejo no toque-toque; servia aos clientes, gratuitamente, algumas porções de camarões, além de ter uma cerveja estupidamente gelada, tipo “véu de noiva”.

Quando alguém pedia para ele colocar uma fita cassete, caso fosse um som no estilo da banda “Pink Floyd”, ele cuspia fogo, expulsava o freguês na hora, não gostava nem pouco de rock, achava que era coisa de maconheiro – dizem alguns frequentadores antigos que, o Sacy era um “cara de lua”, instável, podia passar a noite sorrindo, mas, de repente, fechava o tempo.

Orgulha-se de ter tido como cliente famoso, o saudoso Josué Cláudio de Souza (Pai), o fundador da Rádio Difusora do Amazonas e prefeito de Manaus, ele apareceria por lá para tomar umas cervejas e comprar camarão da melhor qualidade e, quem ia buscá-lo era a sua filha, a inesquecível radialista Fezinha Anzoategui.

Depois de alguns anos movimentando o seu boteco, teve um problema muito sério com um cliente e vizinho, foi xingado e ameaçado, culminado com uma briga fatal, sendo obrigado, em seguida, a fechar para sempre o seu estabelecimento.

Foram anos difíceis para o Saci, inclusive, teve que passar por tratamentos psicológicos para esquecer aquela cena fatídica que aconteceu no seu bar, para dizer a verdade, ele ainda sente muito que aconteceu naquele dia. Para superar este trauma e sobreviver, buscou na música um escape e, o conforto espiritual, frequentando com mais assiduidade à igreja do bairro.

No carnaval, gosta de frequentar os ensaios da sua escola de samba do coração, a Mocidade Independente de Aparecida (a Pareca) e, quando é possível, desfila garbosamente no Sambódromo. Também adora as apresentações dos bois de Parintins, viajando todo ano para a Ilha de Tupinabarana, para torcer pelo seu boi preferido, o Garantido. Por ser católico fervoroso, faz de tudo para participar do Círio de Nazaré, em Belém do Pará, onde segura a corda em todo o seu trajeto e, aproveita para “bater com força” no Pato no Tucupi e na Maniçoba.

Por ser um exímio percussionista, sempre sai de casa com uma sacola surrada, cheia de instrumentos musicais (agogô, reco-reco, triângulo e tamborim), fazendo apresentações de forma descompromissada nos botequins de Manaus, principalmente no Bar Caldeira, Bar do Armando, Bar dos Cornos, ET Bar, Bar do Cipriano e no Bar do Metal – sendo muito aplaudido pela sua forma diferente de tocar e, de rebolar, um tanto sensual.

Certa vez, resolveu passar no baixo meretrício da Rua Mauá, centro antigo de Manaus, parou numa barraca de churrasquinho de gato, deixando no chão a sua sacola de instrumentos e, saboreou um miau da melhor qualidade; um larápio percebendo o descuido do Saci - levou todas as suas ferramentas de trabalho – chorou que nem um bezerro desmamado, muitas pessoas foram solidarias e, fizeram uma quota para a compra de novos instrumentos – ele ainda gosta de comer um churrasquinho de bichano, mas, com um olho no gato e, o outro na sua bolsa!
 
Por essas e por outras, tornou-se um cara folclórico na nossa cidade. Quando alguém pergunta o porquê do apelido Saci, ele responde:

- Sou um Saci diferente, tenho duas pernas, porém, uma é morta! – referindo-se ao seu bilau.

Quando chega aos botecos, após tomar várias e diversas, fica nostálgico, gosta de lembrar o passado, sempre cita o Peteleco & Oscarino, do Boi Brinquedinho (do saudoso Festival Folclórico do General Osório), onde foi “tripa” (aquele cara que dança embaixo do boi); das Pastorinhas do Luso e dos causos interioranos:

- Peteleco, quantas partes se dividem o corpo humano? – pergunta o Oscarino. - Depende das porradas que o caboco tomar! – fica dando gargalhada das respostas do Peteleco.

- Peteleco, como se diz noventa e nove em japonês? – Quazixém! – idem.

- Ei, meu boi! Vem prá cá! Vem dançar. Que a festa já vai começar!  Ei, Boi! – canta em voz alta e, começa a dançar a toada antiga.

- Rocha, filho do Cão do Luso! - faz sempre esta saudação ao me encontrar, pois ele sabe que eu fui ajudante do Cão (o Lapinha), o satanás de uma famosa pastorinha (peça teatral) que acontecia no Luso Sporting Club.

- Alô Dona Maria, do Lago do Limão, o sêo marido mando avisar que vai demorar a chegar, pois um pau atravessou bem na boca do Lago do Periquito, assim que o pau sair, o barco vai continuar a viagem, abraços e beijos, Afonso! – conta com sorrisos, desse aviso interiorano.

O Saci possui família, tem um casal de filhos e faz bastante tempo em que está separado da mulher, apesar de morarem no mesmo teto (isto é normal para muitos casais) – ele adora um “rabo de saia”, certa vez, arranjou uma namorada com mais de setenta anos, adorava chamá-la por “Minha Sincera”, a velha era cheia da grana, gostava muito da noite e, pagava todas – com o passar do tempo, ela deu uma rasteira no Saci, arranjou um garotão “bombado” que tinha idade para ser seu bisneto – o pobre do Saci chegou até ameaçar em pular, na vazante, da Ponte Fábio Lucena (liga os bairros de Aparecida ao São Raimundo) caso ela não voltasse para os seus braços. Tudo em vão!

O tempo foi um santo remédio para ele esquecer a vovozinha – arranjou, tempo depois, outra namorada, uma coroa fogosa, cheia de dengos, “biriteira” de mão cheira e frequentadora assídua dos botecos dançantes de Manaus; ele gosta de chamá-la de “Amorzinho”.

Algumas pessoas falam, eu não sei e, também não posso afirmar que, a dita cuja põe uma galhada enorme no pobre coitado – somente sei que, vez e outra, ele fica chorando pelas mesas dos bares, lamentando o abandono por parte de sua amada – pouquíssimas vezes o vejo feliz com ela, as pessoas falam que isto acontece somente quando ele está com “bala na agulha”, momento em que ela usa e abusa do Saci, largando-o somente quando fica na lisura total.

O Sacy está pensando em dar em basta nisso e, partir para uma nova conquista, afinal, ele é frágil no amor, fica logo apaixonado - espero que ele tenha êxitos e, encontre uma mulher decente e que o respeite. 

O nosso Saci da Pareca está aposentado, ganha uma merreca, batalha muito para sobreviver, vende camarão seco, guaraná em pó, filé de Pirarucu, copaíba e mel, além de fazer o que mais gosta: tocar os seus instrumentos musicais, bebericar umas e diversas nos botecos de Manaus; namorar as suas “sinceras e amorzinhos” da vida; rezar muito nas igrejas de Aparecida e São Sebastião; curtir o seu Boi Garantido (em Parintins) e o Círio de Nazaré (em Belém).

Possui esperanças de um dia realizar o seu grande sonho, em reabrir o seu famoso “Saci Bar”, vender a sua cerveja e camarão e, continuar a vida, uma vez e outra aprontar, tanto quanto o Saci do nosso imaginário popular. É isso ai.

Fotografia: "Saci da Pareca, esse é o cara!", por José Martins Rocha.

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